“Em sua época Santo Atanásio lutou sozinho contra o Arianismo que dominava toda a Igreja, foi excomungado pelo Papa Libério, exilado inúmeras vezes pelos Imperadores. Tudo pela Verdade. Depois seu estado foi restituído e hoje ele é um Doutor da Igreja”
Qualquer Tradicionalista, preparando a narrativa segundos antes de blasfemar
É muito comum que, ao citarmos para um tradicionalista que a totalidade do clero e o Papa defendem a ortodoxia do Concílio Vaticano II e que o Lobo Lefebvre ultrapassou todos os limites sendo excomungado, o mesmo afirme que o ocorreu de forma similar com Santo Atanásio, um Santo firmíssimo, e que hoje a Igreja não apenas reconhece que ele estava certo, mas o conta entre os Doutores da Igreja. E que com Lefebvre ocorrerá a mesma coisa.
Antes de mais nada, cabe observar um detalhe: com o argumento colocado da forma descrita acima podemos defender qualquer herege ou excomungado: de Lefebvre ou Frei Betto, até os Vetero-Católicos… mas sigamos para o caso concreto. Será que essa blásfema analogia pode estar ao menos vagamente correta?
Nosso objetivo não é exaustar o assunto, mas apenas evidenciar alguns pontos fundamentais dos contextos de ambos e dos procederes. Então poderemos julgar se trata-se do mesmo caso.
1 – A Coerência Conciliar de Santo Atanásio e a Incoerência Conciliar do Lobo Lefebvre.
Santo Atanásio, quando tinha em torno de 21 anos, foi convidado por seu Bispo, Alexandre de Alexandria, para acompanhá-lo no Concílio de Niceia, que já fora convocado para dirimir a questão do Arianismo. Conta a história que, embora não pudesse falar no Concílio – porque ainda não era Bispo -, ajudou nos bastidores de forma tão firme que, posteriormente, ele mesmo acabou transformando-se num ícone do Concílio de Nicéia. Ou seja: seu proceder foi coerente com o que acreditava.
Neste Concílio o termo homoousios (consubstancial) foi utilizado para o Credo. Não deixa de ser curioso o fato de muitos Bispos assinaram as atas conciliares, mas, após algum tempo, alguns virem a se arrepender – caindo no Arianismo ou no Semi-Arianismo -. Estes foram incoerentes no seu proceder.
O Lobo Lefebvre participou do Concílio Vaticano II e assinou todas as atas Conciliares, subscrevendo aos documentos [1] e isso já foi confirmado pessoalmente pelo insuspeito Padre Paulo Ricardo, que teve acesso às mesmas. Após ter assinado elas, Lefebvre rejeitou publicamente o conteúdo do Concílio. Nesse aspecto, ele coaduna muito mais com os Bispos heréticos, fracos e incoerentes do século IV, do que com Santo Atanásio.
2 – A Possível Excomunhão Pressionada do Papa Libério versus a Excomunhão Lúcida do Papa São João Paulo II.
O assunto da Excomunhão de Santo Atanásio pelo Papa Libério é muito menos controverso no meio tradicionalista do que deveria – porque convém a eles -; mas a questão é a seguinte: caso tenha havido de fato a excomunhão de Santo Atanásio é certo que não foi, de forma alguma, um ato livre do Papa, fruto de uma deliberação.
Antes de excomungar Santo Atanásio o Papa Libério teria sido exilado por dois anos e recorrentemente ameaçado e subornado, até que teria cedido ao pedido do imperador [2]. Ou seja, aqui não foi de forma alguma uma deliberação do Papa Libério, mas, no máximo, um ato de fraqueza do Papa – que aliás, também era contra o Arianismo.
Logo após esse período controverso de excomunhão, ainda em vida, Santo Atanásio foi reintegrado à sua comunidade e teve tendo contato com muitos outros Santos, como São Basílio Magno. Não viu o Arianismo acabar, mas morreu reintegrado à sua comunidade e venerado por toda a cristandade católica.
Já Lefebvre foi excomungado por um ato livre, deliberado, de um Papa Santo. A excomunhão de Lefebvre se deu por ele sagrar 4 Bispos sem autorização papal [3]; mas um dia antes – isso mesmo, no dia anterior ao ato – São João Paulo II enviou uma carta ao Lobo pedindo que não fizesse aquilo [4], porque seria excomungado; o Lobo sagrou os 4 Bispos e incorreu na excomunhão Latae Sententiae, que foi confirmada por São João Paulo II em seguida [5], dois dias depois.
Aqui está o telegrama enviado por São João Paulo II pelas mãos do futuro Bento XVI, um dia antes da sagração:
“Pelo amor de Cristo e de Sua Igreja, o Pai Celestial diz a você paternalmente e firmemente para que saia hoje de Roma, sem prosseguir em 30 de junho com as ordenações episcopais que anunciou. Ele reza para que os Santos Apóstolos São Pedro e Paulo te inspirem para que não seja falso para com o episcopado que foi posto sob sua responsabilidade, e os juramentos que teve para permanecer fielmente ao Papa, sucessor de Pedro. Ele suplica a Deus para mantê-lo líder daqueles que estão tortuosos e dispersos, aqueles que Cristo Jesus veio para reunir em unidade. Ele te encarrega à interseção da Nossa Senhora, Mãe de Cristo.”
E depois a carta Ecclesia Dei, com a excomunhão, dois dias depois após as sagrações:
“Com grande aflição a Igreja tomou conhecimento da ilegítima ordenação episcopal conferida, a 30 de Junho, pelo Arcebispo Marcel Lefebvre que tornou vãos todos os esforços, feitos desde há anos, a fim de assegurar a plena comunhão com a Igreja à Fraternidade Sacerdotal de São Pio X, fundada pelo mesmo Mons. Lefebvre. De nada, com efeito, serviram tais esforços, especialmente intensos nos últimos meses, em que a Sé Apostólica usou de compreensão até ao limite do possível”
Ou seja, a excomunhão de Lefebvre foi livre, deliberada, por São João Paulo II. Assim como Deus avisou Caim que o mal estava à porta também São João Paulo II avisou Lefebvre, mas o próprio Lefebvre ultrapassou os limites. Morreu excomungado e deixou 4 Bispos excomungados.
Quando o Santo Padre Bento XVI assumiu, retirou a excomunhão dos 4 Bispos – não vou entrar nos méritos dos porquês -, mas não julgou injusta a excomunhão do Lobo Lefebvre [6] – isso mesmo, Bento XVI suspendeu a excomunhão dos 4 Bispos mas julgou que o Lobo foi excomungado justamente -.
Hoje o Papa Francisco teria poder para suspender a excomunhão, se achasse injusta, e também não o fez. Ou seja: um Papa Santo excomungou livremente o Lobo Lefebvre e outros 2 Papas concordaram com a decisão de São João Paulo II.
Nesses aspectos todos a excomunhão do Lobo Lefebvre não tem a mínima relação com a excomunhão de Santo Atanásio. Seria o mesmo que comparar possível fraqueza sob pressão e exílio de 1 Papa com o ato deliberado de 3 Papas…
3 – A Preocupação Pastoral Salutar de Santo Atanásio versus a Despreocupação Ofídica do Lobo Lefebvre:
Se encontrarem uma única linha de escrito de Santo Atanásio mandando seus fiéis se rebelarem contra o Papa e contra Roma, ou afirmando que estão trabalhando em direções opostas, ou que Roma perdeu a fé, ou que o Bispo de Roma é herético, eu apago este artigo.
Porém, estas aqui são as palavras do Lobo Excomungado [leiam se tiverem estômago]:
“Eu resumi ao Cardeal Ratzinger: que mesmo se você conceder-nos um Bispo, mesmo se conceder-nos uma certa autonomia para os Bispos, mesmo se conceder-nos a Liturgia de 1962 em sua plenitude, mesmo que você permita-nos continuar com o Seminário e a Fraternidade da forma que ela funciona no momento; nós não colaboraremos!
Isto é impossível! Impossível! Porque nós trabalhamos em direções diametralmente opostas. Você trabalha para a descristianização da sociedade, do ser humano e da Igreja. Nós trabalhamos para a Cristianização!
Isto é lógico: Roma perdeu a Fé meus senhores amigos! Roma se encontra em Apostasia! Isso não são palavras vãs, apenas digo-lhes a verdade. Roma está em apostasia! Já não se pode confiar neles. Eles abandonaram a Igreja! Eles abandonaram a Igreja! Eles abandonaram a Igreja! Isso é absolutamente certo.” [7]Lobo, Lefebvre
Santo Atanásio lutou contra problemas. Lobo Lefebvre lutou contra Roma. São água e óleo. A atitude de ambos é absolutamente irreconciliável, além de, no caso do Lobo Lefebvre, ser herética – afirmar a Apostasia de Roma é heresia, pois é de fé Católica que Roma não pode Apostatar –
E o lobo está falando para o público! Está incitando as pessoas à revolta! À desconfiança do Papado! Que papado? De São João Paulo II. Comparar Santo Atanásio com esse Lobo é blasfêmia, sim, dessa corja diabólica.
Mas continuemos.
4 – A Luta Eclesial Contra O Arianismo versus a Epopéia Individualista do Lobo Lefebvre.
Quando falamos que o Arianismo foi uma heresia que quase dominou a Igreja no Século IV, que muitos Bispos o propagaram e que Santo Atanásio lutou furiosamente contra ela, às vezes não temos em mãos um quadro palpável o suficiente. A falta de compreensão histórica da Igreja nos deixa vulneráveis a engolir narrativas construídas com a finalidade de mostrar que ‘no passado já aconteceu isso’.
Para citar apenas Santos: Santo Atanásio de Alexandria, Santo Hilário de Poitiers [8], São Lúcifer de Cagliari [9] e Santo Eusébio de Vercelli [10]. Esses quatro Santos foram duramente feridos pela luta contra o Arianismo – isso aí, os todos os 4 -;
Santo Atanásio nunca lutou sozinho contra o Arianismo: ele lutou com a Igreja. O Bispo que o ordenou, Alexandre de Alexandria, lhe transmitiu a fé e foi ao lado dele que iniciou a luta contra o Arianismo; Seu primeiro passo foi dentro de um Concílio. Em sua vida, Santo Atanásio teve inúmeros Bispos Santos lutando ao lado dele e, além dos Bispos Santos, ele teve centenas – isso mesmo, CENTENAS – de Bispos Comuns [11][12], opositores públicos ao Arianismo.
De fato, a Heresia Ariana chegou a dominar uma boa parte de Igreja, também muito por influencia dos Imperadores – que tinham poder e colocavam a máquina do Estado contra os Católicos e a favor dos Arianos e Filo-Arianos. Não simplesmente como consequência das decisões da Igreja. O inimigo era visível, palpável, nada abstrato: Ário e sua corja, muitos Bispos e os Imperadores.
Do outro lado, não estava somente Santo Atanásio. Estava também a Igreja: o Papa – Libério inclusive (o pessoal esquece de mencionar que Libério era publicamente contra o Arianismo) -, centenas de Bispos, diversos Santos e, que surpresa, um Concílio Ecumênico inteiro! O Concílio de Niceia foi justamente a ferramenta que proveu meios para a Igreja afirmar, sem dúvida nem variação, como cria a Natureza Divina de Jesus: Consubstancial ao Pai.
Era a Igreja que estava em luta. Claro que Santo Atanásio foi o que mais sofreu pessoalmente nesta luta – ao menos cinco exílios! -, mas também foi o que mais encarnou O Concílio. Liderou a Igreja na luta e, com a Igreja, venceu o Arianismo postumamente.
Lefebvre, ao contrário, estava contra Roma, contra o Concílio, contra a Igreja, contra a quase totalidade dos Bispos. De todos os que se colocaram ‘contra’ o Concílio, só ele foi excomungado e permaneceu assim. Mais de cinco mil Bispos aceitam o Concílio Vaticano II e seus textos – isso aí, cinco mil. 5.000.
Afirmar que o Concílio é algo ruim para a Igreja e que só uma meia dúzia de Bispos sustentam sozinhos uma luta que é Eclesial (inclusive que os últimos 5 Papas não ‘perceberam’ o mal que o Concílio trouxe) é afirmar que a fé se perdeu e ninguém sabe onde ela se encontra. É afirmar que as portas do inferno já prevaleceram há muito tempo e que, há 60 anos, o Evangelho não adulterado só existe num grupo seleto de católicos iluminados e é inacessível aos simples.
É afirmar que a Igreja perdeu a capacidade de decidir quem é Santo e quem não é – ou que os últimos Santos foram omissos por respeito humano, ou não entendiam nada da fé. É chamar São Pio – que enviou a Carta para o Santo Padre Paulo VI afirmando obediência irrestrita aos Documentos Conciliares – de passador de pano submisso [13]. É chamar O Papa Bento XVI de cego e São João Paulo II de ingênuo, é chamar São Josemaria Escrivá de pusilânime e omisso. É, enfim, chamar os Bispos todos de cegos, ignorantes, ou covardes.
A luta contra o Arianismo foi eclesial, dura, mas toda a Igreja participou ativamente dela e Santo Atanásio foi quem mais sofreu – mas jamais ele ‘sustentou’ a luta sozinho -. Já a luta contra o Concílio Vaticano II é individualista: o Lobo Lefebvre tomou ela como sua bandeira pessoal e ignorou a Igreja toda, sustentou sozinho o seu cisma e foi excomungado por isso. Tanto quis fazer tudo sozinho que acabou excomungado sozinho.
O futuro Santo Padre Bento XVI já havia identificado isso e alertado Lefebvre deste comportamento individualista e, no fundo – que ironia! – liberal:
“Dando uma interpretação pessoal aos textos do Magistério, daríeis paradoxalmente prova desse liberalismo que tão fortemente combateis e agiríeis contra o fim que tendes em vista. Foi, com efeito, a Pedro que o Senhor confiou o governo da sua Igreja; é, pois, o Papa o principal obreiro da sua unidade. Sustentado pelas promessas de Cristo, ele nunca poderá por em oposição na Igreja o seu Magistério autêntico e a Santa Tradição.” [14]
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Pois bem, certamente, embora estejamos falando de duas pessoas que sofreram excomunhão na Igreja esse parece ser o único vínculo que as une.
Santo Atanásio foi sempre coerente com sua posição, foi excomungado por um Papa que o fez sob pressão – se realmente o fez, pois há controvérsias que dariam outro artigo -, que jamais incitou seus fiéis à revolta contra Roma e o Papa, que aguentou sob suas costas a pesada cruz da luta pela Verdade afirmada pelo Concílio e fez isso com a Igreja, com inúmeros Santos e Bispos.
Lobo Lefebvre foi incoerente desde o princípio, foi excomungado por um Papa Santo e extremamente lúcido que praticamente implorou para que Lefebvre não ultrapassasse o limite para o cisma – excomunhão que outros 2 papas mantiveram intacta -, afirmou publicamente a herética sentença afirmando que ‘Roma Apostatou’ e instigando seus seguidores a não confiar em Roma e, por fim, empreendeu sua luta individualista e anti-eclesial.
Comparar ambos seria comparar um Santo Pastor com um Lobo Voraz. Lembremo-nos disso todas as vezes que tentarem distorcer as coisas para fazê-los parecidos. Não compremos esse quadro falso de ambos.
Santo Atanásio, rogai por nós.
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[1] – ACI Digital: Arcebispo Cismático Lefebvre, Sim, Assinou Todos Os Documentos Do Concilio Vaticano II: https://www.acidigital.com/noticias/arcebispo-cismatico-lefebvre-sim-assinou-todos-os-documentos-do-concilio-vaticano-ii-89584
[2] – Beneditinos: Atanásio e a Crise de Fé no Século IV: http://beneditinos.org.br/2012/02/santo-atanasio-e-a-crise-da-fe-no-seculo-iv/
[3] – São João Paulo II, Carta Apostólica Ecclesia Dei (CAED): http://w2.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/motu_proprio/documents/hf_jp-ii_motu-proprio_02071988_ecclesia-dei.html
[4] – Le Croix, 1 July 1988
[5] – (CAED), na data da publicação.
[6] – Decreto Para a Congregação dos Bispos: Removida a Excomunhão a Quatro Bispos da Fraternidade São Pio X: https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cbishops/documents/rc_con_cbishops_doc_20090121_remissione-scomunica_po.html
[7] – Arcebispo Marcel Lefebvre, em 4 de Outubro de 1987: https://www.youtube.com/watch?v=YArugAXM5OQ
[8] – Homilia de Papa Bento XVI, Santo Hilário de Poitiers: http://www.paisdaigreja.com.br/santo-hilario-de-poitiers/
[9] – Homilia de Papa Bento XVI, Santo Eusébio de Vercelli: http://www.paisdaigreja.com.br/santo-eusebio-de-vercelli/
[10] – Wikipedia: São Lúcifer de Cagliari: https://pt.wikipedia.org/wiki/L%C3%BAcifer_(bispo)
[11] – Excerto DANIEL-ROPS: A Igreja dos Apóstolos e Dos Mártires, O Grande Assalto da Inteligência: Grandes defensores do dogma: Santo
Atanásio e Santo Hilário: https://drive.google.com/file/d/1JqGNRvrnTVajzWGAq117dpBnbZQn72XV/view; “plêiade de homens”.
[12] – Santo Atanásio, Ed. Paulus, Coleção Patrística. Introdução. Ver “concílios” e “sínodos” convocados por Santo Atanásio e resultado do próprio Concílio de Nicéia.
[13] – Padre Pio da Pietrelcina, Epistolario IV, 1984, pp.11-14
[14] – Carta de Cadeal Ratzinger à Mgr. Lefebvre, 28.07.1987: http://www.capela.org.br/Crise/ratz187.htm