Cardeal Herranz é membro do Opus Dei a quase 70 anos, trabalhou com São Josemaria Escrivá por 20 anos, trabalhou no Concílio Vaticano II e ao lado de São João Paulo II.
1- “Dói-me a Igreja”, diz Escrivá na década de 1965 a 1975. A que se referia?
—Cardeal Herranz: Ele se referia à chamada ‘crise pós-conciliar’, ao tremendo paradoxo de que, quando o Espírito Santo acabara de enriquecer a Igreja com o Magistério do Vaticano II, certas interpretações errôneas do Concílio levavam muitas almas a consequências tremendamente tristes e dolorosas.
Por exemplo, o desejo de atualizar a fé marginalizando Deus e realizando uma redução temporal da mensagem evangélica de salvação; um restabelecimento da identidade sacerdotal que levou muitos a laicizar o seu estilo de vida e comportou uma hemorragia de demissões sacerdotais e religiosas; um experimentalismo litúrgico anárquico e dessacralizante, com uma progressiva banalização da Santíssima Eucaristia, etc.
São Josemaria compartilhou, muito unido a Paulo VI, a íntima dor do Papa por esta situação.
2- O senhor trabalhou durante todo o pontificado de Paulo VI na preparação da nova legislação eclesiástica. O que diria, pessoalmente, de Paulo VI?
—Cardeal Herranz: Que foi um Papa santo, de heroicas virtudes cristãs e sacerdotais, que dirigiu sabiamente e conduziu o Concílio Vaticano II à feliz conclusão, em meio de agudas e dolorosas tensões doutrinais.
Admirei a sua grande prudência pastoral, o seu amor sacrificado a Cristo e o seu apaixonado amor a uma Igreja que – sendo fiel às exigências do Evangelho – mantivesse um diálogo fecundo com a sociedade moderna. Por isso, em Maio de 1992, escrevi a João Paulo II solicitando que se iniciasse a causa de beatificação.
3 – Entramos aqui no tema da interpretação do Concílio e gostaria de lhe fazer uma pergunta que jamais encontrei uma resposta satisfatória nos livros. Nós hoje lemos que muitos dos que participaram naquele evento tiveram a sensação de que o Concílio foi uma “grande Pentecostes”. Mas logo depois do Concílio houve um momento de grande confusão doutrinal e pastoral. Se diz que o grande problema da Igreja naqueles anos não foi o Concílio, mas a interpretação e a aplicação do Concílio nas diversas circunstâncias concretas. Mas eu e os padres da minha geração nos perguntamos: como é possível que isso tenha ocorrido? Os que tinham que aplicar os ensinamentos do Concílio não eram os mesmos bispos que redigiram ou votaram nos textos conciliares? Será que os bispos não entenderam os textos que eles mesmos escreveram? Por que eles se sentiram sós e desorientados logo depois daquela “grande Pentecostes”? Eles não souberam interpretar o Concílio ou foram outros fatores externos à Igreja que causaram a confusão daquela época? Como podemos entender e viver a “hermenêutica da continuidade”, pedida pelo Papa Bento XVI?
– Cardeal Herraz: Na realidade, a interpretação do Concílio foi feita pela Santa Sé com uma série de Documentos posteriores, alguns de caráter jurídico, como o Motu Proprio Ecclesiae Sanctae; outros de caráter mais doutrinal. Houve uma interpretação como deve ser feita.
Como jurista, eu vejo que o legislador é quem tem o direito de interpretar a lei que ele mesmo fez. A Santa Sé, a autoridade suprema da Igreja, interpreta e interpretou todos os Decretos e Constituições do Vaticano II.
Acontece que, por vezes, houve uma espécie de hierarquia paralela (coloquemos entre aspas “hierarquia”), constituída por um grupo de teólogos, ou alguns teólogos, mais ou menos isolados ou unidos a outros. E por outras pessoas… intelectuais ou não intelectuais… que se movimentavam nos ambientes durante o Concílio, com o desejo de impor idéias que não foram acolhidas pelo Concílio.
Então, ficavam na sombra, como se quisessem preparar um Vaticano III… que também se fala. Isto é: eram as tendências de ruptura que interpretavam o Concílio Vaticano II como se a Igreja tivesse sido refundada então, e começava-se de novo, ignorando tudo o anterior.
Essa é a interpretação que Bento XVI chama de “ruptura com o passado”. Isso, não. Não existe uma Igreja pré-conciliar e outra pós-conciliar. A Igreja é pós-conciliar desde o Concílio de Jerusalém. E deve haver sempre uma continuidade.
A interpretação justa, que é a hermenêutica da reforma na continuidade, é aquela que, aos poucos, foi-se impondo. Infelizmente, essas tendências de alguns grupos anárquicos de orientação teológica, de orientação sociológica ou política (muitas vezes, puramente política) fizeram muito mal,
porque houve uma crise pós-conciliar, perderam-se vocações, foi prejudicada a fidelidade, que é uma virtude fundamental: ser fiéis à fé, ser fiéis à hierarquia, ao Papa, aos bispos, ser fiéis à própria vocação.
Houve uma hemorragia de vocações, seminários que secaram. Felizmente, isso já está passando, digo-o.
No seminário da minha diocese de origem, Córdoba, para falar da Espanha, houve um seminário que foi fechado. Agora há dois seminários: um, que tem mais de 100 alunos, o seminário maior; e outro, missionário, para mandar gente para outros países. Mudou em 25 anos, também pelo impulso de João Paulo II, de transmitir, como sacerdote, uma imagem belíssima do que é o sacerdote.
Mas não vamos nos escandalizar. Isso aconteceu na história da Igreja. Depois do Concílio de Trento houve também uma crise semelhante. Depois vem o Espírito Santo e atua, e as coisas se endireitam e se faz uma justa interpretação.
Atualmente é preciso, e volto ao que dizia antes, atualizar o chamado universal à santidade e ao apostolado, isto é, formar os cristãos no seu direito de serem santos, de configurar a própria vida com as virtudes evangélicas e serem apóstolos, de levar ao mundo sem complexos, indo contra a corrente num mundo que tende a paganizar-se, de levar a Deus, para que não seja colocado nas margens da sociedade. Isso está por fazer, em parte.
4- A ideia do Papa João XXIII era que o Concílio fosse breve. Quais foram as circunstâncias que fizeram com que o Concílio se prolongase mais do previsto? Poderia o senhor resumir como era o ambiente, as tendências e as discussões na aula Conciliar?
Cardeal: Acredito que no Concílio houve duas fases. Uma primeira fase, na primeira sessão conciliar, onde houve duas coisas que se alongaram muito, que era a falta de organização suficiente, porque era um Concílio com mais de 2500 Padres Conciliares vindos de todo o mundo; também não havia uma Sala de Imprensa, isto é, um escritório de informação para fornecer a informação necessária, e havia bastantes confusões no mundo dos meios de comunicação. Vieram mais de mil correspondentes de imprensa e de televisão. E depois, no interior do Concílio, havia como duas tendências doutrinais, opostas em alguns aspectos, que possibilitaram que alguns textos, que no início foram considerados como já bem elaborados, fossem submetidos a um estudo posterior, e portanto requeria mais tempo. A segunda fase, que foi já o resto dos anos sucessivos, foi muito produtiva graças à estupenda tarefa de mediador intelectual de Paulo VI, porque foram aprovados os documentos conciliares quase pela unanimidade dos mais de 2500 Padres Conciliares.
Falava-se muito de que havia uma luta entre progressistas e conservadores. É uma forma um pouco simplória de reduzir as coisas. Havia duas tendências, um tanto extremistas, mas depois conseguiu-se coordenar tudo naquilo que as duas tinham de bom.
Uma delas, em um sentido de fidelidade à fé e que tinha também uma visão onicomprensiva da Tradição, e que excluía uma série de reformas necessárias em alguns aspectos, não já do conteúdo da fé, mas da forma de transmitir a fé.
A segunda tendência, que seria chamada de progressista, era uma visão progressista extrema; era uma visão de novas vias para o ecumenismo, novas vias para o diálogo com o mundo moderno, novas vias para a reforma litúrgica. Nessa procura de novas vias, o conteúdo da mensagem evangélica para transmitir ao mundo ficava bastante prejudicado.
Essas duas tendências extremas, dialogando com serenidade, foram se adaptando aos poucos, tomando o que havia de justo em uma e em outra. No fim, os Documentos foram aprovados quase por unanimidade.