Anotações para o Curso de Atualização para Sacerdotes-CAS (25/07/2012)
Pedem-me um testemunho pessoal. Um testemunho não é uma conferência, é apenas um relato do que a pessoa viu e experimentou; por isso é inevitavelmente subjetivo, ainda que tente ser o mais objetivo possível.
Creio que, como muitos outros padres daquela época, a minha experiência do Concílio passou por quatro fases, que talvez se possam enumerar assim:
1ª) Uma chama de esperança
2ª) Avançando em águas agitadas
3ª) O Concílio encampado
4ª) Resgatando o Concílio
N.B. Quero esclarecer que, nestas anotações, a fim de frisar algumas ideias, coloquei bastantes sublinhados, mesmo em citações de discursos ou documentos oficiais, e de publicações de alguns autores. Todos esses sublinhados são meus, e não dos textos originais.
I. Uma chama de esperança
É preciso ter em conta que o Concílio Vaticano II foi concebido e celebrado em anos difíceis e muito incertos, relativamente próximos ao fim da segunda guerra mundial: crise político-ideológica geral (com a derrocada da ideologia nazi-fascista e o marxismo aparentemente vitorioso), “guerra fria” entre EUA e URSS, corrida armamentista com ameaça séria de guerra atômica capaz de destruir o planeta, “cortina de ferro”, avanço mundial dos regimes comunistas (meia Europa, Ásia: países asiáticos da URSS, China, Vietnã, Coréia, Camboja, etc.); “Igreja do silêncio”; lutas cruentas pela liberdade e a independência nos países da África…
Junto disso, a sociedade ocidental estava cada vez mais mergulhada no materialismo e numa profunda crise de fé. No campo das ideias, predomínio do pessimismo existencialista (“Ser para a morte, ser para o nada” de Heidegger, “O homem, paixão inútil” de Sartre, etc.), da psicanálise determinista freudiana e do materialismo histórico-dialético entre os intelectuais; eram ideias que impregnavam, naqueles anos, boa parte da filosofia, da literatura, cinema, arte, etc. Pareciam sentir-se as convulsões de uma mudança de época e de cultura.
O Beato João XXIII tinha plena consciência da gravidade do momento histórico – como veremos logo a seguir– e das ameaças graves que pairavam sobre o mundo e sobre a Igreja. Não seria justo dizer que concebeu o Concílio – como alguns afirmaram – de maneira pouco pensada (embora tivesse uma concreta inspiração de Deus), levado por um otimismo irrefletido.
É importante lembrar que, ao convocar o Concílio Vaticano II, com a Constituição Apostólica Humanae salutis, na manhã do dia de Natal de 1961, João XXIII dizia: «A Igreja assiste hoje a uma crise que aflige gravemente a sociedade humana. Enquanto a humanidade está para entrar num tempo novo, obrigações de gravidade e amplitude imensas pesam sobre a Igreja, como nas épocas mais trágicas da sua história. Trata-se, na verdade, de pôr em contato o mundo moderno com as energias vivificadoras e perenes do Evangelho». Nesse mesmo documento, comentava que o mundo estava a organizar-se de costas para Deus, orgulhoso de seu desenvolvimento material, ao mesmo tempo que regredia no campo moral e ficava com os valores do espírito enfraquecidos (cf. Ibid.).
Com esperança, o Papa afirmava: «O próximo Concílio reúne-se, felizmente, no momento em que a Igreja percebe de modo mais vivo o desejo de fortificar a sua fé e de se olhar a si mesma na sua própria e maravilhosa unidade; como também percebe melhor a urgente necessidade de dar maior eficiência à sua forte vitalidade, e de promover a santificação dos seus membros, a difusão da verdade revelada, a consolidação das suas estruturas […], permanecendo sempre idêntica a si mesma» (Ibid.).
Seu desejo era, portanto, que a Igreja fosse, pela sua autenticidade divina e vitalidade espiritual, a «alma» vivificadora deste mundo em crise.
Muitos pensadores católicos de grande categoria trabalhavam sinceramente para uma renovação da teologia e do pensamento cristão, fiéis à fé e ao Magistério da Igreja. Às vezes tratava-se de tentativas imprecisas ou ainda não amadurecidas, que provocavam “escândalos” precipitados, e facilitavam aos autores retificações profícuas e maiores esclarecimentos. A imensa maioria deles, porém, nunca pretendeu contestar nem afastar-se do Magistério autêntico da Igreja.
Creio que todos queríamos ver uma Igreja fiel, rejuvenescida e pastoralmente atraente, capaz de revitalizar os católicos e de ganhar para a fé os que a ignoravam ou a tinham abandonado. Baste citar nomes como Henri de Lubac, Romano Guardini, Karl Adam, Odo Casel, Ives Congar, Marie-Dominique Chénu, Jean Daniélou, Reginald Garrigou-Lagrange, Gustave Thils…, e, já antes deles, Mathias Ioseph Scheeben, John Henry Newman, Michael Schmaus (o revisor exigente da tese de mestrado do aluno Ratzinger), e outros.
Ao lado deles, havia nomes de intelectuais e artistas católicos – muitos deles convertidos – que brilhavam como faróis , promovendo entusiasmo e conversões: literatos como G.K. Chesterton, Graham Green (com as reservas que é necessário fazer), François Mauriac (idem.), Giovanni Papini (idem), etc., e filósofos da estatura de Jacques Maritain, Etienne Gilson, Dietrich von Hildebrand, Christopher Dawson, Ioseph Pieper, Cornélio Fabro, etc, etc. Um fervilhar empolgante de ideias – que ultrapassavam o engessamento da escolástica decadente e os pietismos românticos – e que despertavam grandes esperanças. Infelizmente, a maioria deles foram deixados de lado na época das confusões do pós-Concílio. Penso pessoalmente que muitas das suas ideias são plenamente válidas, como sementes temporariamente enterradas, que ainda hão de vingar e dar maiores frutos (já deram muitos) para a Igreja e para o mundo.
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O propósito do Papa ao convocar o Concílio ficou ainda mais claro no seu Discurso de abertura solene do Concílio, em 11 de outubro de 1962.
«O que mais importa ao Concílio Ecumênico – dizia enfaticamente – é o seguinte: que o depósito sagrado da doutrina cristã seja guardado e ensinado de forma mais eficaz». E acrescentava: «Mas para que esta doutrina atinja os múltiplos níveis da atividade humana, que se referem aos indivíduos, às famílias e à vida social, é necessário primeiramente que a Igreja não se aparte do patrimônio sagrado da verdade, recebido dos seus maiores; e, ao mesmo tempo, deve também olhar para o presente, para as novas condições e formas de vida introduzidas no mundo hodierno, que abriram novos caminhos ao apostolado católico».
O Papa declarava ainda que o Concílio não ia definir temas «da doutrina fundamental da Igreja […]. Para isso, não havia necessidade de um Concílio». Mas sim procuraria «uma renovada e tranquila adesão a todo o ensino da Igreja, na sua integridade e exatidão». A doutrina «certa e imutável» – declarava o Papa – deverá ser «fielmente respeitada, aprofundada e exposta de forma a responder às exigência do nosso tempo».
Frisava ainda o Papa o «caráter prevalentemente pastoral do Concílio», e também sublinhava a finalidade ecumênica da assembleia, afirmando que «os homens não podem, sem a ajuda de toda a doutrina revelada, conseguir uma completa e sólida união dos espíritos, com a qual andam juntas a verdadeira paz e a salvação eterna».
O Papa auspiciava uma maior unidade entre os católicos, uma união de orações e desejos com os cristãos separados que almejam sinceramente a unidade, e uma unidade na estima e no respeito para com Igreja Católica por parte daqueles que «seguem ainda religiões não-cristãs»
Tudo respirava um ardente zelo evangelizador, «fiéis às inspirações do Espírito Santo» e contando com a intercessão de Maria, «auxílio dos cristãos, auxílio dos Bispos», que conduziria a uma nova primavera da Igreja. Respirava-se um ar esperançado de reflorescimento e renovação. Era lógico que vibrássemos com muito entusiasmo.
Esse entusiasmo cresceu quando percebemos, já desde as primeiras sessões, que o Concílio não se limitaria a dar leves retoques, a um trabalho “pro forma”, mas procuraria – sem questionar a doutrina nem o Magistério – uma profunda renovação da vida da Igreja e da sua eficácia pastoral.
II. Avançando em águas agitadas
Muitos de nós, porém, percebíamos que essa sede de renovação, de mudanças, muito cedo se vinha transformando numa embriaguez de mudanças, numa psicose de mudanças radicais. Tudo o que era antigo era visto por muitos com desconfiança e até com desprezo. Eram questionados o fim sobrenatural da Igreja, os Sacramentos, a identidade do sacerdote, relativizavam-se com crítica historicista os Mandamentos da Lei de Deus…
Creio que não é exagero dizer que, naqueles anos 60 e 70 (e até mesmo nos 80), viveu-se na Igreja – especialmente entre muitos seminaristas, membros do clero e religiosos – uma autêntica “crise de adolescência”: como se fossem o adolescente que desconfia de tudo o que vem dos “velhos” e tudo quer virara pelo avesso.
Na sua breve biografia, “A minha vida”, o Card. Ratzinger conta, a respeito da época do Concílio: «O Concílio prosseguia, e eu vivia entre Münster e Roma […] Sempre que voltava de Roma encontrava um estado de ânimo mais agitado na Igreja e entre os teólogos. Crescia cada vez mais a impressão de que na Igreja não havia nada de estável, que tudo podia ser objeto de revisão. O Concílio parecia assemelhar-se a um grande parlamento eclesial, que podia mudar tudo e revolucionar qualquer coisa…».
Essa agitação levou a uma ânsia afobada de começar logo a aplicar mudanças, muitas delas secundárias e ingênuas. Não faz muito, um bispo amigo contava que, numa reunião com padres idosos de uma zona rural do sul do país, ao perguntar-lhes sobre quais foram os frutos do Concílio responderam que eram três: tirar a batina, colocar altar “coram populo” e celebrar a Missa em português.
É também importante, creio, não esquecer que essa ânsia renovadora dava-se em uns momentos em que, na sociedade laica ocidental, estava se produzindo uma revolução radical de valores, cujas consequências persistem, pois se tornaram predominantes na sociedade atual, abalando os valores cristãos relativos à família, à vida e, em geral, às virtudes cristãs: 1) Paris 1967 (revolução estudantil, ideológica e moral, de cunho marxista-libertário), 2) Woodstock 1968 (a revolução que teve, nos EUA, como portavoz e detonador o filósofo Marcuse, tentando fundir a psicanálise freudiana com o marxismo): daí a revolução sexual ( “façamos o amor e não a guerra”), o êxtase do LSD e outras drogas, a rejeição de toda norma moral (“é proibido proibir”), de toda autoridade (“o poder jovem”), etc, que desembocariam na generalização do relativismo, do hedonismo, do laicismo, na ideologia dos gêneros, etc.
A impressão que tínhamos era que muitos, na Igreja, por uma embriaguez de mudanças, se deixavam arrastar pelo “rio da história” – ou, como alguns diziam, pelo “trem da história”–, identificado-se com esses movimentos de matriz materialista e laica.
Era natural que isso tudo provocasse – já desde o início – desorientação e confusões, que afetariam seriamente os seminários, o clero, os religiosos e boa parte do laicado católico; que prejudicariam a interpretação e aplicação certa do Concílio, e dificultariam a tarefa – que nunca faltou – de excelentes bispos, sacerdotes, teólogos e outros intelectuais e pastores no empenho por aprofundar e aplicar o Concílio em sintonia com as linhas orientadoras de João XXIII e com as dos documentos magisteriais (Encíclicas, etc.), as normas jurídicas e os ensinamentos catequéticos de Paulo VI.
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Parece-me que para compreender esse período confuso pode ser útil – fazendo alguma simplificação – dizer que houve, naqueles anos , três “concílios” simultâneos:
– “O Concílio” verdadeiro, guiado pelo Espírito Santo – com impasses, divergências, conflitos e debates normais nos Concílios, e com muito trabalho –, que deu como fruto altamente positivo os documentos, tesoruros de riqueza ainda pouco explorada, aprovados pela imensa maioria dos Padres conciliares – a maior parte deles praticamente por unanimidade – , documentos que receberam a confirmação plena do Papa;
– O “concílio” da mídia. Desde o começo, o evento do Concílio foi prato forte da mídia – despreparada para compreender a Igreja, quando não ativamente hostil– , que concentrou a atenção e amplificou ao máximo opiniões particulares “chocantes” de alguns padres conciliares (arrancadas deles de surpresa, na saída à Praça, num restaurante, etc.), intervenções pitorescas de alguns deles nas sessões do Concílio, etc., dando ênfase especial e quase exclusivo ao que se chocasse com a fé, a moral e a disciplina da Igreja Católica.
Foi uma mídia que ignorou o Concílio “verdadeiro” e que, por falta de experiência da Cúria romana, não teve – como agora existe em todos os eventos – um Escritório de comunicação que fornecesse aos jornalistas, com prontidão e eficiência, material escrito didático, resumos, esclarecimentos, documentos autênticos, entrevistas bem preparadas, breefings diários, etc, que se adiantassem às deturpações.
A mídia nunca comentou, por exemplo, o que depois diria Paulo VI: que a essência do Concílio estava na Const. Lumen gentium, e que o ponto central desse documento básico era o capítulo VI: “Vocação universal à santidade na Igreja”.
– Em terceiro lugar, o que poderíamos chamar o “concílio dos teólogos”. Os teólogos – muitos deles de grande categoria, homens de fé e de amor à Igreja – começaram a atuar, em princípio, como peritos nomeados pela Santa Sé ou como assessores particulares dos Padres conciliares. Alguns deles, mais “progressistas”, potenciados pelo altofalante da mídia, passaram logo a assumir a um protagonismo indevido, com o qual se autoconstituíram num “Magistério paralelo”, com a pretensão de serem detentores da autêntica interpretação do Concílio.
Naturalmente, os teólogos que desafiavam abertamente ensinamentos seculares da Igreja atraíram mais do que ninguém a atenção do público, e a mídia passou a concentrar neles seus holofotes. «Os teólogos – escreveu Ratzinger –, ao tocar o poder, descobriram que gostavam dele e se imaginaram a si mesmos como uma autoridade doutrinal paralela, como uma espécie de magistério de peritos».
«Por trás dessa tendência do predomínio dos especialistas – escreveu o Card. Ratzinger em “A minha vida” – percebia-se outra coisa: a ideia de uma soberania eclesial popular em que o próprio povo estabelece aquilo que ele quer entender com o termo Igreja, que aparecia já claramente definida como povo de Deus. Anunciava-se assim a ideia [de cunho marxista] da “Igreja das bases”, da “Igreja do povo”, que depois se converteu no próprio fim da reforma sobretudo no contexto da teologia da libertação».
Essa confusão provocou, em numerosos fiéis, ou uma crise de fé – todas as verdades pareciam frágeis e contestáveis, e crer se identificava com opinar (relativismo)–; ou deu-se um empenho militante de ruptura com a “Igreja preconciliar”, que levou à indisciplina, à anarquia, em muitos ambientes eclesiais, a começar por grande parte dos seminários. Por reação, surgiu o imobilismo rígido dos tradicionalistas.
Tudo parecia indicar – pelo que dolorosamente víamos e sentíamos – que, em vez de se realizar a aspiração de João XXIII de levar a luz de Cristo ao mundo, seguia-se o caminho inverso: substituir a luz de Cristo pelas ideologias do mundo, mais ou menos maquiadas de Cristianismo (existencialismo, marxismo, racionalismo, laicismo relativista, hedonismo, etc.)
III. O Concílio encampado
A adoração do mundo por parte de alguns “teólogos” mais em destaque, e de clérigos e religiosos, e, em consequência, dos bispos que os procuravam como assessores, levou a diluir a doutrina católica nas ideologias laicas. Em muitas dioceses eram ignorados ou combatidos os documentos doutrinais do Papa Paulo VI ou da Santa Sé que iam de encontro aos erros principais (sobre o Reino de Deus, a Eucaristia, a sexualidade, a castidade, o celibato sacerdotal, o culto a Nossa Senhora, a vida religiosa, a vocação missionária da Igreja, a autêntica evangelização, a inculturação, etc.).
Não se pode esquecer que eram momentos em que o marxismo parecia avançar no mundo todo de modo irresistível, em marcha triunfal (ninguém previa ou seu afundamento e desmascaramento, no final dos anos oitenta). Daí a teologia da libertação, que queria embarcar a Igreja na utopia marxista, e substituir – na sua defesa de uma nova “Igreja popular”– a santidade pelo engajamento sociopolítico e pela dialética da luta dos “oprimidos”. Daí igualmente a adesão à “crítica histórica” racionalista nos estudos bíblicos. Daí ao desprezo da moral individual em favor da moral coletiva (pecado coletivo versus culpa pessoal), da nova Moral (Häring, Curran, Marciano Vidal, Fuchs, etc.) com a absorção do freudismo, lacanismo, deconstrucionismo, etc.
Realmente, parecia que o importante era ser “ousado”, mesmo que fosse errado. Daí o sucesso do Catecismo Holandês.
Ao mesmo tempo que a oligarquia desse grupo de teólogos ia impondo em seminários e universidades pontifícias as suas teorias como dogmas, descartava ou desprezava os que as criticavam com a virulência de uma Inquisição (apoiada pelo “braço secular” da mídia). É penoso dizê-lo, mas o que nós vimos e vivemos é que todo aquele que não entrava nessa “onda” era silenciado, tornado objeto de crítica áspera, ridicularizado e excluído.
Acabava-se assim numa absolutização da opinião, do “consenso” em sentido laicista (consenso de opiniões mutáveis, que o Cardeal Newman já havia denunciado como o grande perigo para a Igreja) , tanto por parte das doutrinas progressistas como – por reação – dos tradicionalistas. Uns erigiam uma ideologia em dogma; outros defendiam aspectos opináveis ou secundários como se fossem dogmas.
IV. Resgatando o Concílio
Quero insistir em que – como já ficou patente pela exposição anterior – as quatro “fases” de que estou falando não são sequências cronológicas rigorosamente sucessivas. Especialmente esta que chamo “quarta fase” – o resgate do Concílio – deu-se em todas as outras etapas, desde 1962 até hoje, e cresce cada vez mais.
De fato, sempre houve, ao lado da recepção errônea do Concílio, um outro lado, muito positivo, que coexistiu com toda a crise e deu frutos excelentes. É paradigmático, para entender o posconcílio, o discurso natalino de Bento XVI à Cúria romana em 8/12/2005 [pode ser facilmente encontrado no site www.vatican.va, Bento XVI, discursos, ano e mês].
Perguntando-se se havia sido correta a recepção do Concílio, o Papa falava de que houve «duas hermenêuticas contrárias»:
a) a hermenêutica da «descontinuidade e da ruptura», que focalizava o Concílio – como já vimos – como se fosse uma assembleia constituinte, que ia criar uma nova Igreja por votos E os votos não seriam só os dos Padres conciliares, mas também e sobretudo as opiniões teológicas dos peritos, assessores, professores…
Dizia-se que os documentos do Concílio nada significavam a não ser um «pré-texto», a partir do qual os teólogos exporiam o verdadeiro Concílio: o que importa, dizia-se, não é o magistério conciliar, mas o “espírito do Concílio” (conceito vago, nebuloso, onde qualquer um podia colocar a teoria que bem entendesse, anulando-se assim a objetividade da doutrina do Magistério conciliar).
b) a hermenêutica certa, a «da reforma, da renovação na continuidade».
Dessa segunda hermenêutica, dizia o Papa que «silenciosamente mas de modo cada vez mais visível, produziu e produz frutos». É um fato palpável que essa interpretação «da reforma, da renovação na continuidade», têm dado frutos abundantes desde o começo e ao longo de todo esse período, e está crescendo muito na atualidade.
De fato, em muitos ambientes essa interpretação autêntica é a que está prevalecendo cada vez mais e vai fomentando o novo Pentecostes que os Papas e o Concílio auspiciaram. Basta pensar na quantidade de movimentos, iniciativas, comunidades e entidades eclesiais que, fiéis ao Magistério da Igreja, vêm promovendo – muitas vezes de maneira impressionante – frutos numerosíssimos de conversões, de santidade, de evangelização. Frutos que têm, em grande parte, as suas raízes nos ensinamentos do Concílio, e que se baseiam na doutrina autêntica dos documentos conciliares e na interpretação dada pelos Pontífices.
Como é sabido, duas revistas foram portavozes das duas hermenêuticas: revista Concilium, iniciada em 1965, que se apresentava como a autêntica interpretação do Concílio (com Rahner – que tentava sintetizar o idealismo alemão e Heidegger –, Hans Küng, Häring, Schillebeeckx, Boff depois, etc.); e a revista Communio, surgida em 1969, com o desejo de fomentar aprofundamentos teológicos do Concílio, dentro da hermenêutica da reforma na continuidade (com Ratzinger, Henri de Lubac, Louis Bouyer, Hans Urs von Balthassar, Jorge Medina, Gérard Philips, etc.).
Pode-se dizer que é geral esse resgate do Concílio? Não, evidentemente. A atitude mais generalizada por ora é a de continuar, por inércia, na linha da descontinuidade, sobretudo em seminários e universidades pontifícias. Mas já ha sinais claros de uma adesão cada vez maior ao legítimo magistério da Igreja.
Penso que as reminiscências que, bem ou mal, tentei expor hoje podem ajudar-nos a levar muito a sério o que Bento XVI diz na Carta apostólica Porta fidei de 11/10/2011, com vistas ao Ano da Fé, dedicado ao cinquentenário do Concílio (11/10/2012 a 24/11/2013): debruçar-nos de novo com o máximo interesse nos documentos do Concílio, e no estudo e divulgação acadêmica e pastoral da doutrina do Catecismo da Igreja Católica [e do seu Compêndio] que, no dizer do Papa, «constitui um dos frutos mais importantes do Concílio Vaticano II […]. Nele, de fato, sobressai a riqueza de doutrina que a Igreja acolheu, guardou e ofereceu durante os seus dois mil anos de história» (Porta fidei, n.11). Este Ano da fé, proclamado pelo Papa, poderá ser uma oportunidade decisiva para o “resgate” do Concílio.
Apêndice
Para completar este testemunho, pedem-me explicitamente experiências pessoais. Como foi que atravessei – perguntam-me – a marola do período conciliar e posconciliar? Não vou responder com detalhe nem entrar em intimidades. Apenas tentarei um resumo esquemático.
Em primeiro lugar direi, porque é um dever de justiça, que – como muitos outros – tive a bênção de atravessar esses anos conduzido pela mão de um santo: São Josemaria Escrivá. Todos os que tivemos a mesma experiência nunca agradeceremos bastante a Deus essa graça.
Como é que São Josemaria nos guiou, como nos orientou? Resumindo muitíssimo, diria: 1) Zelando pela fé: lealdade à fé que, desde há mais de 2000 anos, constitui o “depósito” posto por Deus nas mãos da sua Igreja, e que ela guarda e ensina. Fortaleceu-nos na fé sobrenatural, e especialmente na fé na Igreja, e na fé da Igreja, que pode ter aprofundamentos e desenvolvimentos maravilhosos, sem negar nem alterar nada, mas amadurecendo o conhecimento das verdades “eodem sensu, eadem sententia”, como lembrava faz mais de quinze séculos São Vicente de Lerins.
Providenciou que nos fosse facilitado muito material teológico sério (entre outros, Schmaus, Scheeben, Garrigou-Lagrange, Ludwig Ott, Bartmann…); estudos bons sobre os textos conciliares, esclarecimentos e antídotos contra erros doutrinais, estudos filosóficos e teológicos de altura sobre S. Tomás de Aquino (Manser, Gilson, Pieper, Fabro…).
2) Priorizando a santidade e a oração: “sem santidade – dizia-nos – não se faz nada, sem oração não se faz nada”. Insistia na necessidade de termos “piedade de crianças e doutrina de teólogos”, e nos ensinava o modo prático de fazê-lo.
3) Levando-nos a uma fé e um amor maior do que nunca pela Eucaristia (“pôr amor onde se produziu um vazio”) e pelo Sacramento da penitência (confissão pessoal frequente).
4) Estimulando e orientando a nossa luta ascética: virtudes, mortificação, penitência, etc.
5) Movendo-nos à obediência fiel a todas as determinações e reformas conciliares, não como se fossem uma página que vira e anula a anterior, mas como nova página do mesmo livro, que o completa e enriquece.
6) Exortando-nos sem cessar à caridade com todos, especialmente, muita fraternidade sacerdotal com os irmãos que não pensam como nós, evitando criticar as pessoas (“antes morderia a língua e a cuspiria”). “Não somos antinada”, repetia. Ensinava-nos a praticar a amizade sincera, o afeto, a compreensão com todos (sem ceder aos erros), para além das divergências ideológicas e pastorais; e a fomentar laços de união entre os padres através de atividades não polêmicas de espiritualidade sacerdotal (como bem refletiu um artigo de maio do jornal “O São Paulo”, da Arquidiocese do mesmo nome, intitulado “Obrigado, Padre Manuel!”, a raiz do falecimento do Pe. Manuel Correa, sacerdote do Opus Dei que foi um dos orientadores espirituais dos seminaristas de teologia de São Paulo nos conturbados anos sessenta, muito querido por todos, porque “sabia querer bem”).
Penso que, nesta última parte, resumi o essencial.
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É bem possível que muitos de vocês não sintonizem com algumas das minhas apreciações sobre os tempos do Concílio e os do posconcílio, que duram até hoje. Expus o que me pediram, tal como eu o vi, o lembro e o vejo agora. Não tive, porém, a pretensão de pontificar. Obrigado.