Por Nelson Sarmento
Só os anjos têm conhecimento intuitivo e imediato. O processo de conhecimento dos homens precisa passar da abstração das características do objeto particular até as ideias universais. O homem organiza os dados percebidos pelos sentidos, através de representações, até chegar em conceitos, raciocínios e juízos. É óbvio que o aluno que recebe o conhecimento de um Mestre terá suas limitações em razão disso.
A comunicação dos homens não é perfeita, pois as construções e vocábulos podem ter mais de um sentido. Sempre conviveremos com isso. São Roberto Bellarmino diz que até as Escrituras possuem ambiguidades e obscuricidades, e é por isso que é necessária a existência de um Magistério vivo para expor e explicar, continuamente, a revelação.
O “consubstancial” do Concílio de Nicéia comportou uma ambiguidade material, pois a expressão foi usada também pelos sabelianos (negando a pluralidade de pessoas), e em parte foi por isso que houve dificuldade no recebimento da doutrina proposta.
Lutero, por exemplo, entendia que a parte do Memento dos vivos do rito romano que diz “eles vos oferecem, este sacrifício de louvor, por si e por todos os seus”, indicaria na verdade a ideia protestante de sacrifício (sacrifício de culto e ação de graças pela redenção adquirida na cruz). A maioria das críticas de Lutero ao cânon romano não eram pelas expressões em si usadas, mas pelo sentido que dava a elas a Igreja romana. O Catecismo completo da Santa Missa do século XIX, por exemplo, dizia:
“A Igreja somente teme que o pouco discernimento sobre os mistérios possa causar má interpretação às palavras neles contidas…
P. Como a Igreja procura evitar possíveis más interpretações?
R. Apresentando sempre explicações claras dos mistérios aos fiéis”.
O Papa Sisto IV admitiu ambiguidade em um documento magisterial em que se poderia interpretá-lo no sentido de que as orações privadas teriam mesmo valor que as indulgências plenárias. No entanto, a isso responde:
“Segundo a lógica da doutrina Teológica, qualquer proposição que contenha em si um significado duvidoso deve sempre ser compreendida no sentido no qual se torna uma afirmação verdadeira” (Romani Pontificis provida).
Até textos infalíveis podem ter ambiguidades materiais e obscuridades, como foi admitido pelo Papa do Concílio de Trento:
“Caso, eventualmente, alguém aparecer com algum decreto em que existam pontos enunciados com obscuridade e que por este motivo necessita de uma interpretação melhor, ou de alguma decisão, essa pessoa deverá ascender ao lugar determinado por Deus para isto, ou seja, a Sé Apostólica, mestra de todos os fiéis, e cuja autoridade reconheceu com tanta veneração o Santo Concílio, para que, nós, como assim também decretou o Santo Concílio, nos reservamos à declaração e decisão das dificuldades e controvérsias, caso ocorram algumas, nascidas dos mesmos decretos, dispostos como o Concílio justamente nos confiou, para tomar as devidas providências que nos parecerem mais convenientes às províncias”.
Fonte:
http://agnusdei.50webs.com/trento33.htm
Quando o Concílio Vaticano I diz que “As definições do Romano Pontífice são irreformáveis por si mesmas e NÃO PELO CONSENTIMENTO DA IGREJA” essa formulação poderia ser interpretada que é possível existir uma definição do Papa que não seja acolhida pelo Colégio dos bispos e pela Igreja universal, o que foi repudiado por Dom Gasser, secretário da Deputação da Fé.
A questão é que nunca existirá uma ambiguidade formal, porque sempre existe uma intenção por parte da autoridade docente, seja o Papa ou colégio dos bispos. Os ensinamentos sempre têm algum sentido.
Para se conhecer esse sentido devemos procurar o contexto e a intenção do Papa/bispos. A Igreja costuma guardar Atas dos Concílios Ecumênicos (com todas as respostas aos modi e discussões) para quem quiser se aprofundar sobre a questão em caso de alguma dificuldade. Além disso, existe um critério de interpretação que sempre foi ensinado pela Igreja, e São Paulo VI e Bento XVI o repetiram diversas vezes: deve-se interpretar o Magistério na continuidade e à luz da Tradição.
John C. Ford and Gerald Kelly em sua Teologia Moral Contemporânea de 1958 tratam dessa matéria:
“as palavras por si só nem sempre nos dão o sentido, o verdadeiro significado de um pronunciamento papal. Para obter o verdadeiro sentido, o teólogo deve estudar não apenas as palavras, mas seu contexto e a intenção papal ao fazer o pronunciamento. Por contexto, entendemos não tanto o contexto verbal quanto o cenário histórico, porque é aí particularmente que podemos encontrar o verdadeiro significado da afirmação. Por exemplo, se o papa está resolvendo uma controvérsia, suas palavras devem ser tomadas em conjunto com a controvérsia; de que ele está condenando um erro, as palavras devem ser interpretadas com referência ao erro e assim por diante”.
Fonte:
https://reducedculpability.blog/2018/01/14/chapter-2-doctrinal-value-and-interpretation-of-papal-teaching/?fbclid=IwAR3HEPq0vDtARyt6zvHVj1B5Tse_W_g5C4bG_AcjgvsY7GHd_HVxrAT6Rro
Agora, convenhamos, os tradicionalistas confundem muitas vezes aquilo que não aceitam com ambiguidade.
No direito à liberdade, por exemplo, é bem claro o sentido que é ensinado pelo Concílio, que foi apontado inclusive pelo Catecismo da Igreja. Não confunda o que você discorda com ambiguidade. O sentido de subsistit in foi diversas vezes explicado, inclusive através das Atas conciliares e gravações, mas os trads estão mais preocupados com narrativas.