Através dos séculos os concílios fizeram uso de uma série de gêneros literários, muitos dos quais foram tomados emprestados da Antiguidade romana. Em larga medida, os gêneros eram, ou pareciam muito, leis e sentenças judiciais (Digo isso sem desmerecer a sua utilização). Os concílios adotaram padrões legislativos e judiciários do Império. Um Concílio era como o Senado Romano, um organismo legislativo-judiciário. Foi esse modelo que o Vaticano II deixou de lado, por querer adotar outra estratégia discursiva.
Essa desatenção contribui muito para a confusão e a divergência sobre como interpretar os documentos do Concílio. Outra tradição de linguagem atuante nos pronunciamentos conciliares anteriores era a linguagem escolástica, com sua linguagem precisa, mas muitas vezes abstrata, impessoal e a-histórica.
O Vaticano II optou por um outro gênero literário, gênero que os autores romanos chamavam de epidíctico. Era um antigo gênero no discurso religioso, usado extensamente pelos Padres da Igreja em seus sermões e tratados suplementares.
A meta desse gênero é a conquista da anuência interior, não a imposição de conformidade do exterior, como ocorre no discurso legislativo-judiciário. Procura ensinar não tanto por meio de um pronunciamento seco, árido e direto, mas por meio da sugestão, insinuação e exemplo. Seu instrumento é a persuasão, não a coerção.
Em sua orientação geral, os documentos do Concílio se enquadram justamente no molde epidíctico. É um estilo suave comparado com o estilo incisivo do discurso dialético. É corretamente descrito como “pastoral” porque se destina a tornar os ideais cristãos atraentes. Procura estimular o público para as grandes questões da existência. Implícito neles está o convite para erguer-se acima de toda mesquinhez espiritual.
Os documentos conciliares, portanto, têm de ser interpretados e analisados segundo seu gênero, sua forma literária própria. É ilegítimo separar estilo e conteúdo. O estilo é a expressão máximo do sentido. É a chave hermenêutica por excelência. Justamente por adotar esse gênero literário (epidíctico), o Concílio pôde tratar de temas próprios da jornada interior.
Nenhum Concílio anterior tratou explicitamente do tema da santidade, por exemplo. Os gêneros e vocabulários dos Concílios anteriores impossibilitavam o trato adequado do tema, já que a vocação à santidade é algo mais que a conformidade exterior a códigos de conduta obrigatórios. É vocação que, embora precise ter forma exterior, relaciona-se mais diretamente com os impulsos mais elevados do espírito humano.
Antes do Concílio, essa adaptação do ponto de vista e da linguagem patrística já havia se difundido entre os teólogos mais jovens da Europa. Em setembro de 1962, pouco antes da abertura do Vaticano II, o cardeal Frings enviou ao cardeal Cicognani um memorando a respeito os sete primeiros documentos que os padres conciliares receberam para exame e decisão nas semanas iniciais do Concílio. No memorando Frings afirmava que os textos deviam evitar o estilo da teologia dos livros didáticos e “em vez disso falar a linguagem vital da Escritura e dos Padres da Igreja”.
O autor do memorando de Frings era Joseph Ratzinger.
Por Daniel Fernandes
(*) Este texto foi extraído do Facebook sem a revisão do autor